segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Vale a pena ler com atenção esta reportagem das Selecções, é simplesmente impressionante...



Criminosos que obrigam ou enganam pessoas que procuram uma vida melhor no Ocidente estão a fazer um grande negócio na Europa.

Ariana*, de 16 anos, viu pela primeira vez Burim na vila albanesa onde vivia com a mãe. Burim era oito anos mais velho. Ela estava encantada com a atenção que ele lhe dispensava. Quando ele lhe disse que tinha um bom emprego à espera numa fábrica de produtos químicos perto de Florença, ela foi com ele.
Mas após dois dias em sua casa, em Itália, ela descobriu um armário cheio de lingerie sexy e um pacote de preservativos. Nunca antes tinha visto preservativos. Ele disse que pertenciam a outra mulher. Quando Ariana quis guardar as coisas no sótão, Burim respondeu-lhe: «Deixa tudo onde está. Vais precisar.»
A vida dela transformou-se num pesadelo de sexo com desconhecidos durante a noite e espancamentos e violações por parte de Burim durante o dia. Ariana tentou escapar, mas ele descobria-a sempre. Acabou por levá--la para Londres, para um bordel em Earls Court.
Vladimir era um russo na casa dos 20 anos quando respondeu a um anúncio que prometia bons salários a empregados de construção, pessoal doméstico e tradutores na Europa Ocidental. Assinou um contrato de trabalho, mas quando chegou à Holanda, descobriu que o tal emprego não existia. Em vez disso, foi trancado para trabalhos forçados com o seu traficante, que reclamava somas altíssimas pelo transporte e administração.
«50 000 euros era quanto o traficante dizia que eu lhe devia», lembra Vladimir. «Como é que alguma vez eu iria conseguir pagar essa quantia? Como é que conseguiria ser livre?»
Mais de 200 anos depois da abolição da escravatura, há no Mundo cerca de 12,3 milhões de adultos e crianças obrigados a trabalhos forçados e à prostituição. Ariana e Vladimir são apenas duas das vítimas do negócio ilícito do tráfico humano, que gera anualmente à volta de 44 000 milhões de dólares no Mundo inteiro. É o terceiro maior crime global, a seguir ao tráfico de droga e de armas.
Na Europa, o tráfico de seres humanos atingiu proporções epidémicas, impulsionado pela queda do comunismo, o alargamento da União Europeia e a aplicação do Acordo de Schengen, que aboliu as fronteiras dentro do espaço comunitário. «Ao contrário daquele tipo de tráfico de seres humanos em que se paga a um contrabandista para fazer passar emigrantes ilegais pelas fronteiras de um país, neste tipo de tráfico as pessoas são exploradas. São forçadas a trabalhar e a viver em condições deploráveis, com liberdade limitada ou mesmo privadas de liberdade.
Por vezes, são-lhes roubados os passaportes, ficam obrigadas a pagar dívidas enormes, recebendo pouca ou nenhuma remuneração. Estas formas de exploração surgem na indústria do sexo, no trabalho doméstico e no mercado dos casamentos por encomenda, mas também em sectores mais regulamentados, como sejam os da construção e da agricultura. É uma das mais sérias violações dos direitos humanos a que assistimos hoje na Europa», explica Suzanne Hoff, coordenadora internacional da La Strada International, uma rede de organizações não-governamentais europeia que visa lutar contra o tráfico de seres humanos.
Estima-se que a cada ano 250 000 pessoas sejam enganadas por traficantes na Europa. Calcula-se que 10% sejam crianças. É um negócio de cerca de 3000 milhões de dólares por ano. Os traficantes vendem e compram pessoas dentro e fora de fronteiras, como se de cavalos se tratasse.
A La Strada trabalha em localidades que são consideradas como «países de origem» para os gangs do tráfico, onde se incluem a Bielorrússia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, República Checa, Macedónia, Moldávia, Polónia e Ucrânia. Mas também desenvolve um trabalho importante junto das pessoas escravizadas no Ocidente. A Holanda é um dos principais destinos do tráfico humano na Europa Ocidental, juntamente com a Alemanha, Itália, Espanha, Bélgica, França, Escandinávia e Reino Unido.
Relatórios não-oficiais dizem que a cada ano cerca de 50000 cidadãos russos são vendidos para o estrangeiro e explorados como escravos sexuais na Europa Ocidental, no Médio Oriente e na América do Norte. Da Polónia vêm cerca de 15000; da Hungria, 30000. Na Albânia rural, os pais recusam-se a enviar os filhos à escola com medo de que os traficantes os raptem.
Na Alemanha, que é simultaneamente um destino e um país de trânsito do mapa global do tráfico, raparigas romenas que imaginavam vir a trabalhar em restaurantes são presas num novo tipo de bordel onde existe uma «tarifa única» e os «clientes» podem fazer sexo com quantas raparigas que quiserem pelo tempo que quiserem por 100 euros/dia. Numa rusga feita a um clube em Fellbach, perto de Estugarda, em Julho de 2009, a Polícia descobriu 179 homens e 89 mulheres. Muitas das raparigas não tinham sequer 21 anos.
Num caso, relata Sanne Kroon, director de comunicação e lobista do Bonded Labour na Holanda (BLinN, na sigla em inglês) – uma organização que ajuda as vítimas do tráfico a reconstruírem as suas vidas –, «mostraram a uma rapariga obrigada a prostituir-se uma fotografia do filho, de 1 ano, e disseram-lhe: “Sabemos que está com os teus pais. Imagina o que lhe podemos fazer.”»
O tráfico humano não estaria tão disseminado e não seria tão insidioso se não houvesse muitos patrões sem escrúpulos nos países de destino: os donos das casas de diversão nocturna, os agricultores, os donos das fábricas e das lojas, os construtores, as empresas de eventos e os donos de restaurantes que «empregam» as vítimas do tráfico, a quem pagam menos que o salário mínimo, sem olhar ao seu estado de saúde e segurança.
«São todos traficantes», resume Herman Bolhaar, procurador do Ministério Público em Amsterdão. «Este é um problema complexo que tem a ver quer com o crime organizado, quer com as pressões socioeconómicas que conduzem as vítimas para as mãos dos traficantes. A resposta da Polícia, dos advogados, dos governos e das ONGs tem que ser proactiva, focada e coordenada.» Bolhaar dirige um Departamento Contra o Tráfico de Pessoas, um grupo de polícias, delegados do Ministério Público, autarcas e políticos, que coordena a luta contra o tráfico de seres humanos.
Mas em países como a Holanda, em que a prostituição é legal, não é fácil dizer quantos nela trabalham voluntariamente e quantos são obrigados a isso. «Por isso é que o Caso Sneep foi tão determinante», explica Bolhaar. Começou em 2006, quando uma mulher polaca se dirigiu à Polícia em Amsterdão e declarou que ela e outras mulheres, oriundas de países tais como a Polónia, a Bulgária e a Roménia, estavam a ser obrigadas a trabalhar como prostitutas no Red Light District – destino de mais de 4000 vítimas do tráfico anualmente. «Haviam--lhe tirado o passaporte, e ela tinha que pagar aos proxenetas mais de 1000 euros por dia, sete dias por semana», acrescenta. As raparigas que não conseguissem tal quantia eram muitas vezes violadas, agredidas com bastões de basebol e atiradas para banhos de gelo para minimizar as nódoas negras. Depois, eram colocadas novamente «ao serviço». Outras eram marcadas com tatuagens para que se soubesse que eram propriedade dos irmãos turcos Saban e Hasan Baran.
Uma operação de vigilância coordenada espalhou-se por Haia, Utreque, Alkmaar e Vinkeveen e conduziu à detenção dos irmãos e de seis cúmplices. Nove das suas vítimas, algumas sob o programa de protecção especial de testemunhas, prestaram declarações e entregaram provas em 2008. Hasan, de 43 anos, e Saban, de 38, controlavam um «império» de tráfico de seres humanos e de drogas que se estendia, para além da Holanda, para a Bélgica e Alemanha. Ganharam milhões de euros em quatro anos. Saban foi condenado a sete anos e meio de prisão, a que se somaram mais oito por tentativa de homicídio. Hasan foi condenado a dois anos e meio de prisão, mas interpôs recurso.
«Existem cerca de 120 vítimas», explica Bolhaar. «Lidámos com casos de uma tal brutalidade que nos sentimos na obrigação, perante futuras vítimas, de fazer soar todas as campainhas de alarme. Se hoje mencionarmos Sneep, toda a gente sabe que estamos a falar de uma acção concertada contra os traficantes.»
Enquanto existiam 4166 condenações por tráfico de seres humanos em todo o Mundo, em 2009 apenas 335 estavam relacionadas com trabalhos forçados. E, no entanto, a construção, a agricultura, as docas, as fábricas de materiais perigosos e a escravatura doméstica são os destinos de mais de 50% das vítimas de tráfico, não apenas os bordéis. Aos olhos das leis internacionais, a escravatura é um crime grave. No entanto, na Europa as condenações por trabalhos forçados caíram de 80 em 2007 para apenas 16 em 2008, isto apesar de já terem ascendido a 149 em 2009.
«Em parte, isto deve-se ao facto de ser muito difícil de detectar», explica Sanne Kroon. «Pode ser a mulher do supermercado, que faz muitas horas extras, ou o apanhador de espargos, que trabalha no campo por 1 euro à hora.» No entanto, diz Roger Plant, que até 2009 foi director do Programa de Acção Especial do ILO para o Combate ao Trabalho Forçado, sediado em Genebra, as forças policiais na Europa estão a começar «a acordar ... para situações de abuso flagrante».
As agências de viagens descrevem a província de Foggia, na Apúlia, no Sul de Itália, como «o paraíso do turismo de Verão». Para aqueles que vivem nas zonas mais pobres da Polónia, os anúncios que prometem trabalhos bem remunerados a 6 euros à hora, mais alimentação e alojamento, no sector da agricultura em Foggia funcionam como um atractivo irresistível. Contudo, após uma viagem extenuante, Stanislav Fudalin, de 51 anos, conta ter encontrado o líder ucraniano de um gang a trabalhar para os agricultores locais. O homem disse-lhe: «Aqui quem faz as regras sou eu. Vocês são meus escravos. Se tentarem fugir, eu apanho-vos e mato-vos. Voltam para a Polónia num saco de lixo.»
Com os passaportes confiscados, os polacos eram forçados a trabalhar 16 horas por dia a apanhar tomate. Já «afundados» em volumosas dívidas pelos «empréstimos» relativos ao transporte desde a Polónia até ali, apenhas lhes pagavam 1 euro por hora, do qual tinham que pagar ainda a alimentação e o alojamento em barracas sem electricidade, aquecimento ou água, que eram trancadas à noite e guardadas por homens armados. Os que tinham o azar de adoecer, eram obrigados a pagar aos líderes do gang 20 euros por cada dia que não pudessem trabalhar. A única coisa que era de borla eram os espancamentos. Estavam escravizados num ciclo de dívidas perpétuas.
Por vezes, alguns conseguiam escapar, e as suas histórias de horror desencadearam a Operação Terra Promessa (Terra Prometida), uma acção conjunta do Departamento do Crime Organizado dos Carabinieri e da Unidade Central de Combate ao Tráfico de Seres Humanos de Varsóvia, com o apoio do Departamento Anti-Mafia de Bari e o trabalho de escuta e outra ajuda por parte da Interpol e da Europol.
Numa série de intervenções a 18 de Julho de 2006, 113 trabalhadores foram libertados. Dezanove traficantes – 16 deles polacos, 2 da Ucrânia e 1 da Argélia – foram detidos. Dezassete estão a cumprir neste momento penas entre os 4 e os 10 anos de prisão.
A escravatura doméstica é outra crescente preocupação. «É muito difícil identificar as vítimas, porque os “patrões” as proíbem de falar», explica Sophia Lakhdar, do Comité Contra a Escravatura Moderna (CCEM) em França. Alice, de 27 anos, natural da Argélia, foi escravizada pelo dono de um café e a sua mulher em Paris durante quatro anos, como ama, empregada de limpeza e tratadora do cão. Obrigada a dormir no chão, nunca foi autorizada a sair sozinha e foi humilhada e ameaçada. «Durante dois anos, não recebi um tostão. A senhora disse-me que estava a trabalhar para pagar a minha passagem de avião. Em 2004 e 2005, mandaram 600 euros para os meus pais. Nunca recebi directamente nada.» Em 2007, Alice conseguiu fugir aos seus «patrões», e agora está a construir a sua própria família em Paris. Os donos do café nunca foram punidos.
Para combater um «crime hediondo», Cecilia Malmström, comissária europeia para os Assuntos Internos, propôs a criação do cargo de coordenador europeu antitráfico. Num discurso recente, instou os Estados-membros a conjugarem esforços mais eficazmente. «Precisamos de reforçar a moldura penal com melhor protecção e penas mais duras.» As condenações por tráfico de seres humanos são mais pequenas do que por tráfico de droga. A maior parte dos traficantes anda à solta. Sessenta e dois países ainda têm que condenar um único traficante com o Protocolo Europeu de Palermo sobre o Tráfico, que foi criado em 2003 para prevenir, suprimir e punir o tráfico.
Mas a prisão nem sempre detém os traficantes. Em 2006, a Polícia Criminal Central da Estónia e os seus congéneres em Helsínquia descobriram que três criminosos estavam a trazer mulheres para a Finlândia para trabalhar na prostituição a partir das suas celas na Estónia. Num site de uma rede social, escolhiam as mulheres «ideais». Depois, contactavam-nas através de telefones contrabandeados e faziam-se passar por ricos homens de negócios que recrutavam amas ou acompanhantes, enquanto as namoradas, no exterior, tratavam do transporte e «lavavam» o dinheiro dos lucros.
Infelizmente, as autoridades de alguns países até ajudam os criminosos a fugir. Em Setembro de 2009, Saban Baran pediu autorização para ir passar alguns dias com o seu filho recém-nascido. Incrivelmente, o tribunal holandês permitiu-lhe uma saída precária. Sem surpresas, fugiu, espalhando o terror entre as suas vítimas.
Como é que alguém tão perigoso pode ser libertado? «Perguntem ao juiz», replica um furioso Herman Bolhaar, que tem vindo a lutar pela aplicação de penas mais pesadas aos principais personagens do Caso Sneep.
Não houve fuga possível para Oxana, a filha de Nikolay Rantsev. A estudante de línguas, de 20 anos, foi atraída da Rússia para Chipre com promessas de cumprir o sonho de se tornar tradutora. Três semanas depois de ter chegado, em Março de 2001, foi encontrada morta na rua, depois de ter caído de um quinto andar em Limassol. Estava a tentar escapar a um trabalho num cabaré que tinha pouco a ver com tradução.
Após anos de uma batalha jurídica, Nikolay conseguiu um feito no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, que em Janeiro de 2010 considerou que o Chipre e a Rússia foram culpados ao não terem conseguido proteger Oxana do tráfico de seres humanos e, como tal, condenou-os ao pagamento de uma multa de 40000 e 2000 euros, respectivamente. Míseras quantias, mas para Nikolay não é o dinheiro que está em causa. «Morri quando a mataram, mas metade de mim continua viva na esperança de conseguir o meu objectivo. Quero que as potenciais vítimas conheçam a história da minha filha. Quero que estejam alerta e cientes do que lhes pode acontecer.»
Ariana conseguiu, por fim, fugir em 2006. Agora com 31 anos, vive na Holanda, onde apresentou queixa contra Burim. Não se sabe bem como, mas ele conseguiu convencer as autoridades britânicas a concederem-lhe estatuto de refugiado e continua em Londres e em liberdade. O tempo trouxe algum apaziguamento. «Vejo agora a vida com outros olhos», diz Ariana. «Começo a acreditar que sou um ser humano.» Pediu a nacionalidade holandesa, frequentou aulas do idioma e trabalha como empregada de limpeza.
Ariana faz parte de um grupo de aconselhamento na Holanda chamado Samen Sterk. Significa Força Conjunta e ajuda mulheres na situação em que já esteve. «Não é fácil para as mulheres passarem directamente do submundo para a legalidade», explica, «ou falar com polícias e assistentes sociais. Nós fazemos a ponte, porque já passámos pelo mesmo.»
Para os Vladimires deste mundo, há poucas hipóteses de fuga. Os traficantes geralmente confiscam os passaportes e ameaçam denunciá-los como imigrantes ilegais ou fazer mal às suas famílias. Mas este Vladimir conseguiu escapar e, com o apoio do BLinN, apresentou queixa contra os seus traficantes. Mas estes desapareceram sem deixar rasto. «A Polícia nunca conseguiu apanhar os criminosos», diz Sanne Kroon. «Agora, perdemos todo o contacto com ele. Não fazemos ideia onde está, ou sequer se está nas mãos de um dos traficantes.»


Reportagem de Tim Bouquet
Reportagens adicionais de Lisa Donafee e Laura van der Meer.

1 comentários:

Anónimo disse...

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